À Procura da Palavra
Vitor Gonçalves
Domingo XXIX do Tempo Comum – Ano A
“Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus.” Mt 22, 21
Ser de Deus
“A resposta de Jesus à pergunta “armadilhada” que lhe fazem fariseus e partidários de Herodes deve ser das frases mais utilizadas e comentadas ao longo dos tempos. Com as habituais distorções para servir interesses e ideologias e, tantas vezes, esquecendo que Jesus não está a fazer uma divisão de poderes mas a hierarquizar o que é mais importante: no fundo, tudo pertence a Deus e não se pode dar a César (ao que estiver de turno em cada momento da história!) a vida e a dignidade humana, a vida de todos os filhos de Deus.
Como pano de fundo desta questão descobrimos interesses vários a quem as palavras de Jesus incomodam: os que defendem o reino de Roma (Pilatos e o seu governo), os partidários de uma revolução contra Roma, e os que querem um reino que possam manobrar em nome de Deus (normalmente os mais religiosos!). Pilatos não é referido, mas seria certamente a ele que levariam Jesus se tivesse posto em causa o pagamento do tributo: nada melhor para eliminar um adversário do que denunciá-lo e entregá-lo aos inimigos. De Pilatos pouco se sabe: seria o governador cruel que encheu Jerusalém com bustos e insígnias de César, e teria usado o dinheiro sagrado do Templo para fazer um aqueduto? Ter-se-ia suicidado como atesta Eusébio de Cesareia? O certo é que a Igreja Ortodoxa Etíope o canonizou com a sua mulher, num processo de reabilitação que alguns textos apócrifos realizaram. E por estes dias estreou no Teatro “A Comuna” uma peça adaptada do romance de Eric-Emmanuel Schmitt intitulado “O Evangelho segundo Pilatos”. Li o romance e quero ir ver a peça. Do livro guardo duas frases: “Duvidar e crer é a mesma coisa, Pilatos. Só a indiferença é ateia. […] Se ele se deixou crucificar, foi por amar os homens. Se ressuscitou, foi para mostrar que tinha razão em amar e que mesmo que nos desmintam, devemos ter sempre a coragem de amar.”
O dinheiro não é de Deus, pois de Deus somos nós próprios. O poder que se pode ter sobre as coisas ninguém ter sobre as pessoas. E o uso egoísta dos bens, a embriaguez de falsa eternidade que os poderosos adquirem, o endeusamento que o dinheiro parece provocar desfiguram a imagem de Deus que cada pessoa tem no seu íntimo. Santo Agostinho dizia: “César procura a sua imagem: dai-lha. Deus procura a sua: devolvei-lha. Não perca César a sua moeda por vós; não perca Deus a sua imagem em vós.” Isto não significa uma renúncia às responsabilidades de construirmos este mundo, ou um afastamento da política e da economia. Pelo contrário, o agir cristão compromete a sermos fermento no meio da massa. É favorecendo o crescimento de todos, promovendo a vida e os dons de cada um, salvaguardando a dignidade e a justiça que cada pessoa merece, que “damos a Deus o que é de Deus”! Ou julgávamos que bonitas cerimónias e cânticos afinados eram o suficiente? Descobrimos o Deus vivo ao cuidarmos do homem vivo, como dizia Santo Ireneu: “A glória de Deus é o homem vivo”! E há tanto dinheiro que só anda a espalhar morte!”