Viver a Quaresma no Ano de Misericórdia
1.
Na sua mensagem para a Quaresma deste Ano Jubilar, o Papa Francisco diz-nos que este «é um tempo favorável para todos poderem, finalmente, sair da própria alienação existencial, graças à escuta da Palavra e às obras de misericórdia».
Nesta proposta encontramos o desafio constante do Evangelho, dos ensinamentos da Igreja, dos apelos incessantes e repetidos do Papa: ouvir, rezar e atuar.
E para isso, é preciso querer, fazer tempo e não ter medo: para ouvir a Palavra e criar silêncio para que Ela possa ser escutada, possa gerar espaço para que seja acolhida e possa reproduzir as sementes recebidas; para refletir e olhar para dentro de cada um e para fora de cada um, e ver o mundo imenso que nos foi dado e que temos de cuidar, ver e sentir todos os irmãos e irmãs que connosco fazem esta imensa sociedade; para repelir a indiferença que preenche os nossos dias e não nos deixa sentir nem ver nada para além de nós próprios, deixando-nos assim invadir pelo amor do Pai e pelo amor aos outros; para atuar, assumindo um papel, corrigindo desigualdades, apaziguando sofrimentos, zelando pela justiça, construindo a paz, com misericórdia.
Na Bula de proclamação do Jubileu Extraordinário da Misericórdia podemos ler que a «…misericórdia: é a lei fundamental que mora no coração de cada pessoa, quando vê com olhos sinceros o irmão que encontra no caminho da vida. Misericórdia: é o caminho que une Deus e o homem, porque nos abre o coração à esperança de sermos amados para sempre, apesar da limitação do nosso pecado» (n. 2). E ainda: «Há momentos em que somos chamados, de maneira ainda mais intensa, a fixar o olhar na misericórdia, para nos tornarmos nós mesmos sinal eficaz do agir do Pai» (n. 3).
2.
O mundo vive uma profunda crise humanitária decorrente de níveis de pobreza e privação extremos, desigualdades insustentáveis, guerras e conflitos, perseguições religiosas, vagas imensas de refugiados, extremismos crescentes. A incerteza e a indecisão nas atitudes dos líderes, a amorfia das sociedades, põem em causa a indispensável solidariedade da ação, condicionam o futuro, tornam-no instável e sem
esperança.
Vemos, assim, que a realidade concreta contemporânea espelha, a par de conquistas sem precedentes do desenvolvimento humano (científico e tecnológico), um mundo profundamente assimétrico, inaceitavelmente desigual, marcado por níveis intoleráveis de injustiça e violência, numa rota de desenvolvimento inevitavelmente insustentável.
Em meados de janeiro de 2016, a ONG Oxfam publicou um relatório sobre desigualdade (posteriormente discutido em Davos na reunião dos líderes mundiais) que dá conta de uma economia nada humana (na expressão do Papa Francisco, uma “economia que mata”). São impressivos os números: 1% da população mundial possui riqueza igual à que é partilhada pelos restantes 99%; a riqueza de 62 pessoas super-ricas é equivalente à que é auferida por cerca de metade da população mundial; todos os dias, uma em cada nove pessoas passa fome. E face ao impressivo aumento do fosso da desigualdade, só podemos falar de passividade, de indiferença, perante tamanha injustiça e consequente sofrimento, apesar dos recentemente proclamados objetivos do Milénio, aprovados pela Assembleia Geral das Nações Unidas, que visam introduzir uma rota para uma sociedade mais justa e enquadrada numa estratégia de desenvolvimento sustentável.
O nosso País é um reflexo do panorama global aludido, evidenciado por indicadores que referem a imensa extensão da população portuguesa que vive em situação de pobreza, os níveis crescentes de desigualdade, e ainda muitas outras situações que vão deixando para trás tantos e tantas que assim se vão juntando ao crescente número dos excluídos: as crianças com insucesso educativo, os jovens sem trabalho, uma parte significativa da população ativa a caminho de situações de desemprego estrutural, os velhos sem voz, e tantos outros sem acesso adequado à justiça e à saúde, perante a ineficácia de estratégias e políticas públicas.
Perante este panorama, a C.N.J.P. aderiu à ação concertada anual da rede de comissões justiça e paz europeias, relativa à temática da Crescente desigualdade e tributação justa. Essa ação pretende salientar como a desigualdade crescente se alimenta de lacunas e injustiças dos sistemas fiscais, como a menor tributação dos rendimentos do capital e os chamados “paraísos fiscais”. Desse modo, são os que mais rendimentos auferem os que menos impostos pagam. Um fenómeno que também se verifica em Portugal, mais ainda do que noutros países.
3.
A proposta que nos é feita, é bem clara, é de ação. Mas é também, e em primeiro lugar, de conversão.
A vida, nas palavras do Papa Francisco, é uma peregrinação que cada pessoa deverá fazer segundo as suas próprias forças…que exige empenho e sacrifício, que é estímulo à conversão. (n. 14).
Seguindo os ensinamentos do Papa, não podemos deixar de referir as etapas da peregrinação indicadas por Jesus: «Não julgueis e não sereis julgados; não condeneis e não sereis condenados; perdoai e sereis perdoados. Dai e ser-vos-á dado: uma boa medida, cheia, recalcada, transbordante será lançada no vosso regaço. A medida que usardes com os outros será usada convosco» (Lc 6, 37-38). E ainda: «Sede misericordiosos, como o vosso Pai é misericordioso» (Lc 6, 36).
Trata-se de um programa de vida que obriga ao silêncio, à escuta e à reflexão, para assim podermos ser inundados pela “eterna misericórdia do Senhor” (versículo do salmo 136) e conseguirmos enfim olhar para nós próprios e reconhecer a nossa limitação, com a alegria do dom recebido, ver o outro e ser capaz de notar a sua identidade, a sua necessidade, o seu sofrimento, ou a sua diferença, aceitar o exercício da compaixão como lema da ação, adotar a misericórdia como estilo de vida.
É necessária uma conversão urgente e sem medo.
É urgente olhar e ser capaz de ver, combater a indiferença e perceber o carácter tremendo da necessidade da intervenção solidária, sempre solidária, perante a necessidade do vizinho, o silêncio do velho, a impotência da criança, a invisibilidade da diferença, a exclusão do estrangeiro, a injustiça da desigualdade.
É urgente não ter medo de olhar e de ver, de ser capaz de prescindir e partilhar, de amar, de ser compassivo, de viver a misericórdia. Será importante, para tal, repensar e redescobrir a “atualidade das obras de misericórdia”1.
4.
Mas a conversão que se procura promove, informa e exige a ação.
O Papa Francisco na Bula do Ano Jubilar cita o profeta Isaías: «O jejum que me agrada não será antes este: libertar os que foram presos injustamente, livrá-los do jugo que levam às costas, pôr em liberdade os oprimidos, quebrar toda a espécie de opressão, repartir o teu pão com os esfomeados, dar abrigo aos infelizes sem casa, atender e vestir os nus e não desprezar o teu irmão.» (Is 50, 1-9a)
A cada um de nós, cidadãos e cidadãs comuns, é exigido um comprometimento em cada dia, em cada realidade concreta onde vive, na família, no trabalho, na comunidade, de forma a tornar real o desafio do profeta.
Comprometimento que é olhar implicado que ultrapassa diagnósticos rotineiros e distantes, que é identificação e intervenção que muda, que rejeita o errado e que é capaz de atuar, construindo.
Mas comprometimento que também ultrapassa os limites da vizinhança, que influencia as decisões coletivas, que participa no desenho do que nos respeita.
Só assim poderemos influenciar e participar nas decisões dos líderes políticos de forma a que a gestão da coisa pública não seja nem indiferente, nem passiva, nem desajustada, antes orientada para a promoção do bem comum, determinada por uma intervenção preferencial junto dos mais frágeis, empenhada no combate sem quartel à desigualdade e à eliminação de todas as formas de violência e discriminação, aberta ao diálogo interno e externo, rejeitando, assim, todas as formas de fechamento.
5.
O Papa apela na sua mensagem quaresmal: “Não percamos este tempo de Quaresma favorável à conversão!”
A Comissão Nacional Justiça e Paz, neste tempo de Quaresma, acolhe a proposta do Santo Padre e nela procura inspiração para a sua reflexão e ação, e apela a todos os irmãos e irmãs para que assumam o desafio da conversão pedida: passar da indiferença à misericórdia, através de uma cultura de solidariedade.
10 de fevereiro de 2016
1 Manicardi L. (2011), A Caridade que Dá que Fazer, Lisboa, Paulinas