Isabel empurrou a custo os últimos escombros e conseguiu ver o céu. Chovia e o vento era forte. À volta havia só destroços fumegantes do ataque nuclear. Ignorava se o país sobrevivera, mas ali a destruição era total.
Se fosse um filme americano ela resistiria, após aventuras épicas. Mas na vida real o seu fim estava próximo. Suportara demasiada radiação para sobreviver. Mais cedo ou mais tarde morreria. Então notou que essa fora a sua condição toda a vida: mais cedo ou mais tarde ia morrer. Era a existência humana. De forma estranha, o pensamento negro deu-lhe ânimo. A morte era certa mas tinha de tratar da vida. “Viver cada instante em pleno” fora sempre o seu lema.
Isabel era pragmática: tinha de pensar no melhor uso das suas poucas forças. Numa cidade morta, mantimentos não faltavam, mas não ia poder ficar. Os inúmeros cadáveres rapidamente tornariam a vizinhança inabitável. Sozinha e abalada tinha de sair. Os campos a norte eram mais seguros, podendo regressar para buscar comida. Agora havia que escolher o indispensável para levar. Mas que era indispensável?
Subitamente Isabel percebeu: o mais necessário era Deus. O que quer que acontecesse nos próximos dias, nas próximas horas, ela tinha de ter Deus do seu lado. A prioridade era encontrar Deus.
Dirigiu-se coxeando para a igreja, a poucos quarteirões de casa, mas esperava-a uma amarga desilusão: o edifício tinha desabado e nada restava. As tentativas de penetrar nos escombros falharam. Teve de desistir. Isabel entrou num supermercado e sentou-se a pensar, comendo um pacote de bolachas da prateleira. Tinha de tentar nas outras. Nada mais interessava. Na cidade, pouco devota, havia apenas quatro igrejas. A chuva forte e as ruas juncadas de entulho só permitiam seguir a pé. Esperava-a uma boa caminhada. Com um sorriso pensou que tinha a tarde livre. Uma bomba nuclear adia todas as reuniões.
Isabel mantinha os olhos semicerrados para não ver o horror dos cadáveres. Como já sentira o gosto adocicado do seu sangue na boca, sabia que em breve se lhes juntaria. As duas igrejas mais próximas foram visitadas em apenas duas horas, mas a situação era a mesma. Uma ainda ardia. Teria Deus abandonado a cidade? Tal como em Belém, ali não havia lugar para Ele. Pôs-se de joelhos debaixo de um alpendre e rezou uns instantes. A oração deu-lhe ânimo e decidiu-se a atravessar a cidade destruída para se dirigir à última esperança, a Igreja da Encarnação no monte junto ao rio.
O Sol começava a descer quando Isabel lá chegou. Talvez fosse sugestão, mas sentia o cheiro da podridão dos cadáveres. Ao avistar a igreja teve um sobressalto: a torre ainda estava de pé. Aproximando-se percebeu que o edifício desabaria a qualquer momento. Como ela própria estava tão condenada como o templo, não pensou no perigo e entrou. Havia vários mortos na igreja, mas ela só tinha olhos para o sacrário. Felizmente a chave estava na fechadura, e pôde abri-lo. Pegou no único cálice e saiu o mais rápido possível. Um barrote quase a atingiu. Parou no extremo do adro e, sob a chuva miudinha, de joelhos, abriu a tampa do cálice: havia apenas uma hóstia.
A sua alegria não teve limites: Deus não a abandonara. Tinha ficado com ela, ali, na cidade da morte. Não havia lugar para Ele mas, como em Belém, insistia em vir e ficar. Só para ela. Isabel manteve-se prostrada em oração diante do cálice em cima de uma pedra. A água, o ruído do fogo e desabamentos não a perturbavam. Sentia-se já no céu. Com Deus todo o mal fica bem.
Finalmente levantou-se e pensou no que havia a fazer. Tinha Deus consigo e agora a prioridade era um sacrário para Ele ficar no campo. Um presépio. Depois pensaria no resto da bagagem. Alguns minutos de reflexão e uma luz brilhou-lhe nos olhos. Voltou a ajoelhar-se e, tendo feito acto de contrição, tomou a partícula e comungou. O melhor sacrário era o seu coração. Deus assim ficaria consigo em pleno.
Era noite quando começou a visitar as lojas à volta para preparar a bagagem. Noite de Natal. A melhor de sempre. A última.