Informações
Realizador: Terrence Malick
Protagonistas: Christian Bale, Natalie Portman, Cate Blanchett
Ano de Lançamento: 2016
Duração: 118 minutos
Comentário
Este filme não é fácil de se ver. Precisa-se de alguma paciência. A crítica foi quase unânime ao deitar abaixo Malick neste seu último filme. Muitos acusam-no de usar uma forma de filme que resultou no passado (Árvore da Vida, 2011, vencedor da palma de ouro em Cannes) e que, ao ser reproduzida numa história diferente, perdeu qualidade. Alguns espetadores referem a dificuldade de “apanhar o fio à meada” a tantas imagens e frases sussurradas sem nexo aparente. Até houve quem abandonasse as salas de cinema durante o filme.
Lembremos que Malick distancia-se do mundo de Hollywood e seus exageros. Não se incomoda em cortar cenas aos filmes independentemente dos atores que as interpretam, como fez em The thin red line (Barreira Invisível) de 1998 e em To the wonder (A essência do amor) de 2012. Nos filmes de Malick as personagens surgem sem aviso, gerando expetativa pela não compreensão do que vem a seguir. É um artesão do improviso ao ponto de deixar os atores à deriva sem guião, como em To the wonder.
Cavaleiro de Copas começa com uma história. Era uma vez um jovem príncipe cavaleiro enviado pelo seu rei, o rei do Este, ao Egito para procurar uma pérola no fundo do mar. Mas quando o príncipe chegou, o povo serviu-lhe uma bebida que o fez esquecer-se de que era o filho do rei e da sua demanda pela pérola, caindo num sono profundo. O pai de Rick, o protagonista, costumava ler-lhe esta história quando era pequeno.
Rick (Christian Bale) é um argumentista de sucesso em Hollywood. Anseia por qualquer coisa na vida, sem saber muito bem o quê ou como encontrá-lo. A morte do irmão Billy paira sobre a trama (suicídio diziam alguns). A relação com o pai Joseph (Brian Dennehy) é complicada. É um homem que dedicou a sua vida ao trabalho, mas está destruído por um sentimento de culpa. O irmão Barry (Wes Bentley) é mais intempestivo e agressivo (sobretudo com o pai).
O filme desenrola-se em capítulos com o nome das cartas do tarot. Ao longo dos vários capítulos, a câmara inquieta e flutuante de Malick segue a vida e o olhar do protagonista que aparece sempre perdido e desconfiado.
O trabalho de fotografia de Emmanuel Lubezki, tal como em Árvore da Vida, volta a surpreender pelos grandes ângulos e amplitude de espaços, que mostram o protagonista sempre à espreita como que um espião avaliando ambientes hostis. Rick é um forasteiro, desconhecido, perdido no seu próprio habitat.
Outro elemento presente ao longo da narrativa são as várias mulheres da vida de Rick. A esposa médica que deixou, as relações esporádicas, a relação proibida com uma mulher casada. Cada uma das mulheres parece saber mais da vida de Rick do que ele próprio.
Cavaleiro de copas é uma das cartas do tarot que manifesta o lado sentimental e romântico da vida, a figura do cavaleiro errante em demanda de conquistas, a falta de objetividade e realismo, o eterno apaixonado pelo Amor, o amante… Rick é tudo isso no meio da sua vida de exageros, festas, drogas, relações fortuitas e desligadas. É parábola dos tempos atuais: líquidos (a água é o elemento da carta de tarot do cavaleiro de copas e marca presença abundante no filme); sem memória (príncipe que se esqueceu da pérola e que era filho do rei); esmagados pela apatia, pessimismo e solidão (imagens do deserto e do mar).
Não há narrativa explícita, apenas fragmentos de imagens e frases sussurradas. Meias frases que expressam angústia por um tempo perdido, sem memória nem futuro ou objetivo. Uma vida fragmentada e estranha a si própria no meio das circunstâncias, em busca de algo que não se sabe bem o que é mas que se deseja ser algo mais do que aquilo que se tem.
O homem, sempre no centro da câmara, tornou-se mundano (roupas, casas, festas). Abandonou a transcendência que transparecia na Árvore da Vida. Já não se importa com a realidade, é fruto de uma sociedade que “levantou um espelho” de si própria. Desconfia ter uma “chave chamada promessa que é capaz de abrir qualquer porta no castelo da dúvida”, mas sente-se perdido. O mundo absorve sempre mais e mais; é um pântano e há que voar sobre ele. Mas as asas que levavam o homem ao paraíso foram cortadas. Procura-se “não o amor mas a experiência amorosa”. Existe “tanto amor dentro de nós mas que nunca sai”. Pelo meio, a lembrança da pérola… O homem procura uma liberdade que não conhece, da qual restam as saudades de um passado em que pelo menos sentia paz (casamento). Mistura-se a urgência do presente e angústia do passado. As mulheres do filme talvez sejam uma imagem efémera de redenção que assinala uma busca do amor como hipótese divina.
No filme Árvore da vida encontrávamos passagens bíblicas explícitas, que faziam parte da trama com que se desvendava o mistério do mundo, situado entre a natureza e a graça. No Cavaleiro de copas não deixa de ser significativa a opção pelo tarot; as passagens bíblicas dispersas indiretas e meio em surdina algures entre o apocalíptico e o relato da Criação; o uso do livro “O Peregrino: A viagem do cristão à Cidade celestial”, de John Bunyan.
Não se apresenta nenhum Deus, nenhuma solução. O homem peregrino tornou-se errante dentro da própria casa, uma alma quebrada e pessimista. “O para sempre não existe”. “Não há princípios, só circunstâncias”. Parece que não existem significados certos ou errados, tudo é possível de se experimentar. Onde começa a ilusão e termina a realidade? Será a beleza a apreensão direta da realidade ou uma construção do sujeito? Existe beleza fora de contexto? Fora de um percurso de vida que situa o presente entre um passado e um futuro? Haverá um caminho? Foge-se do sofrimento e da culpa (a mãe que aparece de relance) enchendo a vida com aparentes sucessos e sensações. “Já não me lembro do homem que queria ser”. Mas Deus não nos livra do sofrimento, antes até o envia porque “nos liga a algo maior” (Bispo, capítulo “A Morte”). Haverá redenção?
Existe a lembrança da infância, a luz do leste, a lua e as estrelas no meio da escuridão, a “luz nos olhos dos outros”, a pérola… Como alcançá-la? “Meu filho, lembra-te”… Acorda, vira-te, olha, sai, COMEÇA…
Este filme parece não veicular verdades absolutas. Nem a favor nem contra. Não se trata de pseudo auto-ajudas… É feito para desinstalar, incomodar, questionar.
Tudo isto podia ter sido dito em dez minutos de filme? Podia, mas não seria a mesma coisa.