Na passada segunda-feira, a Igreja celebrou a Conversão de S. Paulo. Escutámos, a partir do Livro dos Actos dos Apóstolos (Act 22, 3-16) da litúrgia desse dia, a história de Saulo, um judeu nascido em Tarso, na Cilícia, perseguidor de cristãos. A conversão deste homem dá-se a caminho de Damasco, numa das suas missões enquanto perseguidor, porque uma forte luz, vinda do Céu, encadeou Saulo e este caiu por terra, debatendo-se em diálogo com o Senhor:
“- Saulo, Saulo, porque me persegues?
– Quem és Tu, Senhor?
– Eu sou Jesus Nazareno, a quem tu persegues.”
Neste episódio do Caminho de Damasco, Saulo, perdeu a visão e foi guiado até Damasco pelos companheiros. Em Damasco encontrou-se com Ananias que lhe devolveu a vista e lhe deu o batismo purificando-o de todos os pecados. Assim, Saulo (agora Paulo), tornou-se apostólo na messe do Senhor.
A reflexão de hoje, pretende que possamos rezar a Conversão de S. Paulo a partir da Arte. Rezar com a Arte é uma experiência, pessoalmente, muito enriquecedora e demasiado bela para não ser partilhada. Esta semana pude rezar esta Conversão a partir da arte de Caravaggio, com a ajuda de um padre Jesuíta, no Centro Universitário Padre António Vieira, em Lisboa. Os quadros propostos para reflexão (abaixo enunciados), retratam o mesmo episódio (A Conversão de S. Paulo) e datam de 1600 e de 1601. O primeiro quadro (de 1600) está desaparecido e o segundo (de 1601) encontra-se exposto na Capela Cerase, na Igreja de Santa Maria del Popolo, em Roma. Conta-se que há duas teorias para explicar a existência de dois quadros a retratar a mesma situação. Uma delas descreve que Caravaggio terá pintado a segunda obra para obedecer aos padrões da época e para a atualizar, a outra denuncia que a primeira obra não teria uma figura de Jesus digna e, portanto, foi necessário refazer o quadro.
A Conversão de S. Paulo, Caravaggio (1600)
A Conversão de S. Paulo, Caravaggio (1601)
Aquilo que sabemos sobre a arte de Caravaggio é que é uma pintura muito dramática, repleta de um jogo de claros-escuros que nos fazem viver numa grande proximidade da realidade. Há na pintura de Caravaggio um grande naturalismo.
Sobre os quadros… Em ambos é retratada a figura de um cavalo. No entanto, no relato bíblico não há nenhuma menção a esta figura. Conta-se que a proveniência do cavalo possa advir dos Evangelhos Apócrifos (escritos dos primeiros séculos do cristianismo que não foram reconhecidos como inspirados por Deus), surgindo do imaginário religioso e podendo ser interpretado de duas formas: com um caráter de urgência, uma vez que seria muito mais rápido que Paulo perseguisse cristãos a cavalo ao invés de se deslocar a pé; ou pelo caráter de violência, a conversão de Paulo teria tido mais ênfase com uma queda de cavalo, em vez de um tropação (por exemplo), denunciando maior experiência de humildade. O facto das pinturas sugerirem que Paulo montasse a cavalo pode surgir por oposição à situação de Jesus que entrou em Jerusalém montado num jumento, enaltecendo Paulo, sobrepondo-o à figura de Jesus.
O primeiro quadro dá-nos, no geral, uma ideia de revolta pela associação das várias partes: figura de S. Paulo surge com um rosto alongado e com uma barba comprida, como em outras pinturas de outros autores, no entanto aquilo que sobressai é que Paulo surge de rosto tapado pelas próprias mãos, quase como em modo de defesa perante a agressividade da luz que cai como um foco. O próprio cavalo, já mencionado anteriormente, “estrebucha” e espuma, demonstrando violência. Há sinais marcantes de Paulo cair por terra, como o capacete de soldado perdido. Temos ainda a figura de um homem que aponta uma lança como que a defender Paulo, uma vez que os homens que estavam com Paulo ouviam uma voz mas nada viam. E temos Jesus, um homem de rosto jovem e a figura de um anjo que O segura, lembrando que os anjos seguram e suportam. A figura de Jesus tem a mão direita estendida a Paulo, questionando-o como no diálogo que líamos na litúrgia e a mão esquerda aparece com a palma voltada para cima em sinal de ternura e acolhimento. Nota-se que a paisagem deste quadro é uma paisagem exterior e que esta situação teve testemunhas.
Por sua vez, o segundo quadro dá-nos a sensação de muita calma. Aqui, a presença do cavalo é muito forte, nele reflete-se a luz e nele há também um instinto de proteção, marcado pela pata dianteira levantada, não é ele o responsável pela queda de Paulo. Surge a figura de um criado que parece ser uma figura muito forte como o cavalo, analisando as veias das suas pernas. Neste quadro temos dois focos de luz: um foco frontal que ilumina a figura do cavalo e um foco superior que ilumina a figura de Paulo. Se fizermos uma rotação de 180º e analisarmos o rosto de S. Paulo, vimos que, ao contrário do primeiro quadro, Paulo, surge com o rosto descoberto e jovem como que a prometer um futuro diferente e de braços abertos, como que a abraçar o mundo. Este é verdadeiramente o momento da sua conversão! Paulo surge, ainda, com a espada embainhada. A espada é o símbolo de S. Paulo, porque ele perseguia violentamente os cristãos e foi decapitado por uma espada. A presença deste objeto pode ser explicada como a presença da Palavra de Deus, porque tal como Paulo perseguia violentamente os cristãos, aquando da sua conversão, também defendia assertivamente a Palavra de Deus e era muito firme quando a transmitia. Coloca-se, agora, a pergunta: Onde estão as testemunhas da conversão neste quadro? Pela posição de Paulo, assume-se que a sua cabeça estará no colo do espetador e é o mesmo espetador do quadro que é a testemunha e o interveniente. É também este o motivo de sentirmos paz ao contemplar a obra, estamos envolvidos, sentimo-nos presença neste momento único na história de S. Paulo. O próprio ambiente escuro exterior reporta-nos a esta intimidade do encontro. Neste episódio, Paulo perde a arrogância, deixa-se transformar, deixa-se batizar. Esta transformação e este batismo dão-se pelo Amor, presentes na luz que ilumina o quadro e, nós, presenciamos este Amor e o momento em que Paulo renasce da “morte”. O rosto de Paulo denuncia esta mesma experiência: o êxtase. Um rosto muito sereno que convida a entrar na interioridade da experiência que viveu.
Agora que já explorámos os quadros e que já nos deixámos interpelar pela arte… algumas curiosidades: a Igreja, a 25 de janeiro, não celebrou S. Paulo enquanto Santo, mas a sua conversão. Como queremos viver a nossa conversão ao Evangelho de Jesus, nas nossas vidas?
Juntamente com S. Pedro, S. Paulo, é um pilar da Igreja e nós, cristãos, celebramos a Conversão de S. Paulo exatamente um mês depois do Natal, será que olhamos para esta conversão como um renascer da Igreja?
Para concluir esta longa reflexão proponho, ainda, a leitura da Carta de S. Paulo aos Filipenses (Fl 3, 3-14) onde S. Paulo nos diz que se lança para a frente e corre para a meta. Este é um grande convite à nossa conversão pessoal. Será que a aceitamos de braços abertos como fez Paulo?
Liliana Nabais
(reflexão a partir da Conferência “A Conversão de S. Paulo «segundo» Caravaggio”, do Padre Gonçalo Castro Fonseca, sj)